“Eles passarão, nós passarinhos!”
Inspirado em Mário Quintana
RuAção é um projeto em processo e, provavelmente, inacabado. Tem uma matriz pedagógica paulofreireana. Precisamente, por isso, não é um projeto para pessoas em condição de vulnerabilidade que vivem da/na rua mas um projeto com elas e por elas. A principal razão disso é que, sendo um projeto voltado à educação popular, sempre será uma educação emancipatória, cujo principal sujeito é o próprio oprimido. Freire construiu, sem inclarezas, uma Pedagogia do Oprimido. Ele é, efetivamente, o primeiro Educador de si próprio.
Não é pois um projeto para pessoas carentes, elas não o são. Sua condição é resultado de um processo de desigualdade induzido e fabricado por uma acumulação de recursos econômicos, simbólicos e sociais que lhes foram tirados e sequestrados: não são carente, foram empobrecidos, explorados e expropriados, sobretudo, do direito à sua humanidade e da sua condição política. Isso é a convergência em Freire de sua escolha: “Eu sou dialético fenomenológico!”
Não se faz favor às pessoas em condição de rua! E não há qualquer ação “compensatória” que lhes possa fazer. São seres de direitos, e lhes caberá, isso sim, é acesso ao reconhecimento desta sua condição, e corrigir a injustiça histórica a que foi submetida não somente pelo Estado, mas por todos nós, da sociedade. Se há recursos sobrantes nesta sociedade nas quais elas se situam, para que não falte trabalho, comida, estudo, casa, saúde, transporte a quem quer que seja, – e os há! – sua pobreza e vulnerabilidade nos joga na cara a injustiça e a violência que todos e todas lhes causamos. Se existem estes recursos – e os há! – é dever moral e ético de serem devolvidos à sua indigência, como afirmação de sua dignidade ferida, jamais completamente compensada…
O Projeto RuAção é um projeto que tem como primeira função reaprender com essa mesma população a humanidade e a ternura que perdemos, por sua existência em nosso meio. Está longe de ser alcançada por metodologias e procedimentos somente, nada nos redime da culpa de que todos e todas carecemos de um movimento de entendimento de nós mesmos, de que a humanidade perdida por vulnerabilizar qualquer pessoa, destrói em boa parte, nossa própria humanidade. E a recuperação do sentido desta humanidade nos reconstrói, também a nós, como pessoas melhores, mais solidárias e mais felizes.
A cidade de Cuiabá não será feliz, se o povo que nela existe não experimentar a felicidade e o sentido de ser humano sem carências, com dignidade e com valor.
O projeto RuAção pretende ajudar coletivamente a contribuir para formulação de políticas públicas, a partir do sentido gratificante da relação de pesquisadores com as pessoas em vulnerabilidade, entendido – em primeiro lugar – o trabalho como criação, e não como recurso ou força de trabalho. O corpo dos trabalhadores e trabalhadoras e daqueles que estão a merce da violência que justifica, o sacrifícios do corpo como espaço da destruição da nossa própria casa, e por ela, destruição de nossa subjetividade. Nossa apresentação ao mundo, carece de ser construída por cada qual, numa direção só sua, com conexão com toda a criação, com a terra, com os animais, com as árvores, com as águas, com as pessoas humanas para um Viver Feliz.
O Projeto RuAção não abrirá mão de que toda a educação é política. E a política é a arte de recuperação da criação do novo, em parte, que permita repensar a estrutura perversa que cinde os pretendidos ‘Bons” de um lado, e isola os pretendidos ‘maus’ do no outro lado. Maus como é considerada a humanidade dos empobrecidos,é a perspectiva do ponto de vista dominante que se pretende fora e imaculado, ou por cima, reafirmando a astúcia da mentira, e de ter mãos limpas, num processo que sempre será fruto de todos e de cada qual, e cuja miséria a todos nos incrimina.
O RuAção entende que toda pessoa tem direito simultâneo à igualdade e à diferença. Que ninguém é obra conclusa, ninguém está formado, ninguém está pronto, e a decisão de estar a caminho de se auto-construir a cada passo, por ser possível, é um dever.
O RuAção quer entender que as grandes transformações da sociedade não partem de cima, mas debaixo. Não parte dos códigos e planejamentos mas da vida concreta vivida, do jeito que se pode, em um sistema que destrói a condição ética, a cidadania das pessoas.
A Rua – em nossas cidades – são os lugares da aniquilação dos direitos, da expropriação deles, e sobretudo, da retirada da razão, da voz dos condenados da terra. O Estado tem responsabilidade nisso, como tem toda a população. Não haverá solução sem democracia participativa, solidária e responsável.
A Rua é onde tudo falta, por isso não é lugar apenas de negatividade, mas onde pequenos gestos de ternura e humanidade tem efeito transformador das relação que constroem a teia da vida. Uma pesquisa não é uma tese, uma dissertação, nem um programa! É, antes de tudo, um ação politico-pedagógica- emancipatória.
O RuAção não quer pensar as pessoas como recursos para… Pessoas jamais podem ser medidas pela utilidade, como instrumento para, o seu valor é um valor em si, por si próprias. Heidegger lembrava que a filosofia por seu grande valor, não deveria servir para nada, como contestação aos Tomistas que diziam que a filosofia era a serva de teologia. Da mesma forma, as pessoas não foram feitas para só terem valor e sentido se trabalharem e produzirem, se estiverem institucionalizadas, se estiverem numa estrutura de estado. Enquanto as pessoas não tiverem fim em si mesmas, o que significa uma corrente de vida à qual precisam estar ligados, como condição de poderem acolher a vida.
O Projeto RuAção não pretende por ninguém no mercado por decreto, salvo se esta for a escolha das pessoas. Há muito mais espaços além do mercado. “Há muito mais sociedade além do Mercado e do Estado” (MAUSS).
O RuAção se for, enquanto sonho, terá que ser até o fim, sonhado por todos. Durará, se esse for o destino que lhe dermos. Não poderá ser feito por uma pessoa só. Só subsistirá como teimosia, como vontade contra a corrente da exclusão e da morte, em favor da democracia a ser construída.
PESQUISE COM A GENTE
05_2014_01_30_Questionário_perfil
Cuiabá, 11/01/2014